Quando fiz 33 anos, não houve quem não me cumprimentasse com a frase: “A idade de Cristo”. Embora não seja uma cristã praticante, carrego comigo os muitos anos de colégio de freiras. Assim, a idade de Cristo me envaidecia. Memória afetiva.
Um dia, fui à missa com a minha mãe. Há muitos anos eu não entrava numa igreja, a despeito de saber de cor uma celebração inteira. E segui o rito levantando, sentando, respondendo, tudo como manda o figurino. Eis que chega a homilia. Essa parte sempre foi respeitadíssima nas cerimônias religiosas dominicais a que minha mãe nos obrigava, minha irmã e eu, a ir. Eu gostava, para ser sincera. Não apenas de ver tanta gente junta, mas de imaginar um mundo melhor. Sou incapaz de me lembrar de uma homilia daquela época, mas devia ser algo espantoso nos dias de hoje. Digo isso, porque o monsenhor que sempre conduzia as missas tinha cara de bravo, jeito de bravo e era elogiado pelo meu professor de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política do Brasil – o ouro da pedagogia da ditadura –, um homem que adorava (ou fingia adorar) os milicos presidentes.
Sinto-me traída quando olho para trás, porque eu falava “Brasil, ame-o ou deixe-o” depois de cantar o Hino Nacional, com um tremendo orgulho. E chorei de tristeza quando o bom velhinho Médici, deixou a Presidência da República. À época não sabíamos que por trás de slogan que soa tão singelo havia gente morrendo nos porões da ditadura.
Mas estou tergiversando aqui… Voltemos àquela missa específica, a que fui com a minha mãe aos 33 anos. Tudo estava como de costume e, não nego, veio a lembrança que me levou às missas do passado. Como Proust com suas madeleines, quanto mais eu me esforçava para sentir a emoção primal, mais fugidia ela se tornava.
Voltemos à homilia. O padre falava qualquer coisa, mas eu estava preocupada em segurar a tal da memória escapista. Até que ele disse “… como Cristo, morto aos 33 anos”.
Oi? Nunca relacionei a minha idade à morte de Cristo. Era automática a resposta quando falavam sobre a tal da “idade de Cristo”. Eu não me lembrava que era justamente… aos 33. Não consegui mais prestar atenção à missa. Uma sensação de terror me acometeu, algo parecido com pânico, segundo as descrições que eu li. Minha mão suada tremia quando fui desejar a paz do Senhor para quem estava mais próximo. Tive uma certeza infantil de que aquele seria o meu fim.
É preciso ter um ego muito desequilibrado para se comparar a Cristo. Esse foi o recado da minha consciência, já atordoada por completo. Saí da igreja e passei um ano achando que era o meu último. Hoje, perto dos 66, fico pensando se uma pessoa pecadora como eu não vai fazer a viagem sem volta na idade dobrada…
Cássia Janeiro é diretora da União Brasileira de Escritores (UBE). Entre outros prêmios, foi a primeira sul-americana a ganhar o Prêmio Mundial de Poesia Nósside, chancelado pela Unesco. Foi professora universitária em diversas instituições de Ensino Superior, consultora da Unesco, onde participou da missão brasileira no Timor Leste, e dos programas Alfabetização e Capacitação Solidária.
Parabéns, Cassia!