MANIFESTOS
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RUBENS RODRIGUES, O POETA: PEQUENO ENSAIO SOBRE O
“STRIP-TEASE” DA PALAVRA
Eliakim Ferreira Oliveira
Morreu
há pouco o grande filósofo e poeta, autêntico virtuose da palavra,
Rubens Rodrigues Torres Filho. Em vez de iluminar a filosofia de Rubens, leitura
rigorosa e fecunda da filosofia alemã dos séculos XVIII e XIX, eu gostaria de
lançar luz sobre o Rubens poeta, infelizmente pouco lido pela crítica
literária. Em 1981, Rubens publica, juntamente com os Jardins da
Provocação de Claudio Willer (1940-2023), em edição de Massao
Ohno, O voo circunflexo. É, como alguém disse, um livro-jogo, mais
exatamente um jogo que circula no cancioneiro de sentido e nonsense.
Nesse livro, Rubens segue à risca, a nosso ver, os imperativos de Drummond:
“não faça versos sobre acontecimentos”, “não cante tua
cidade”, “não dramatizes”, “não invoques” e, o mais
importante, que é síntese e fundamento: “penetra surdamente no reino das palavras”.
Isso resultou numa poesia que é em grande parte signo de, e não
tanto signo para. Em outros termos, é uma poesia que tende a ser
única e exclusivamente do signo, enquanto elemento concreto de fatura e
elaboração em solidariedade com outros signos. O título do livro, nesse
sentido, não é gratuito: o voo circunflexo é já um signo que aponta a outro —
aquele acento circunflexo invertido que, quando visto meio de longe, é o voo prototípico
e desenho infantil de qualquer ave. Importa, com isso, essa aparente referência
de um signo (a longínqua arribação que nos remete ao voo das aves) a outro (o
acento circunflexo que pomos sobre outros signos, como uma ave que voa
invertida).
Que
não confundamos essa poesia com a poesia concreta, elaborada pouco antes,
embora a poesia de Rubens dê grande relevo — tal como a de João Cabral e Orides
Fontela (também poeta e filósofa) — à dimensão concreta da palavra. Veja:
CRIVO
Seja o verbo luzir
e
a pomba luz,
mas fixa, trans-
vertebrada.
Límpida lâmpada, é só alvo
a alvura. Salvo
essa perene sutura futura.
E
não falamos, ainda, que a anteposição do artigo ao voo obriga o leitor a ver, n’o
voo circunflexo, um “ovo”: o signo que está, sem querer querendo,
grávido de outro. Não à toa, no mesmo livro, Rubens publica o poema “ab
ovo” (p. 49) e, poucas páginas depois, o poema “puxa-palavra”.
Isso de o signo estar prenhe de outro é, em outras palavras, a palavra que puxa
a palavra, mas não ao acaso, como na cacofonia infantil, mas de maneira condicionada
a encontrar, na outra, outro sentido que contamine a primeira:
Palavra puxa palavra,
tristeza puxa tristeza
e o mundo, de tão redondo,
vai ficando uma represa
fechada até o alto,
palavra puxa tristeza. […]
O
essencial, o que importa, de novo, é “penetrar surdamente no reino das
palavras”. Elas é que são a “matéria-prima” da poesia, a
primazia do poema:
Esta palavra contém
um poema
este poema não
contém palavras. Uma
palavra
e
outra
dançando ciranda
compondo o
colar […].
No
livro seguinte, de 1985, o procedimento é escancarado: A Letra
Descalça: poemas. Hora de ir além: despir a palavra, insistir num strip-tease do
verbo, para chegar às estruturas do poema, fazer ver se há par entre o verbo e
o real. Como no poema “minguante”, em que a letra, para além da
palavra, se torna a imagem do referente, não em harmonia imitativa, mas em
imitação pictórica:
minguado lirismo
ó almas do terceiro mundo:
a palavra LUA
traça
um crescente, se tanto
já MOON,
duas
e
cheias
Suponho
que esse procedimento muito tenha a ver com certas escolhas filosóficas de
Rubens. O poeta, certa vez, ao investigar as relações entre nossos códigos de
leitura do mundo e o próprio mundo a partir do transcendental kantiano,
perguntou-se: “Eu leio, enfim, o voo da pomba [seria essa
uma obsessão rubensiana pelo voo?] — mas sou mesmo eu ou
são esses códigos que, afinal, estão lendo?” (In: A virtus
dormitiva de Kant). Rubens destaca, então, a impossibilidade de
sair do signo, da relação de significação, para ver a coisa, ela mesma, pura,
face a face, sem sobre ela caírem nossos códigos de significação. Se isso é
impossível, tratemos de levar a sério o que temos: o signo, só ele, construto
humano e ponte para o real.